Pedro Jorge de Castro – Cineasta
Doutor em Comunicação e Artes
Presidente do Centro Cultural de Ciências da Natureza Luiz Cruls
José Dumont – em Tigipió
Mais do que o privilégio de dirigir a grande atriz, Regina Dourado, experimentei a alegria de conviver com a notável pessoa que a todos encantava. Olhos negros com olhar de indagação, às vezes de surpresa e às vezes de indignação. O olhar de Regina prenunciava suas palavras e integrava seu sorriso. Regina faleceu de câncer, em pleno outubro rosa, no dia 27 de outubro.
Grandes atores, como B. de Paiva, José Dumont, Ricardo Guilherme, João Falcão e outros de igual nível, deram o melhor de sua arte e técnica para que TIGIPIÓ, Uma História de Amor e Honra, imaginado por Hermann Lima, homem de formação judaica cristão, saísse do papel para encantar as mais exigentes plateias em todo o mundo. Regina Dourado conseguiu ser mais do que uma atriz irretocável.
A viva lembrança que tenho do meu primeiro encontro com Regina, ela no auge da popularidade em novelas, deixou-me a marca do seu afeto, sua graça e gentileza e impressionou-me muito quando ela quis saber muito mais além do roteiro e que eu falasse do significado da história pra mim. Leu o roteiro em dois dias e me pediu o conto original de Hermann Lima. Ficou exultante quando eu disse quem estava também no elenco – B. de Paiva e José Dumont. A atriz profissional estava sempre pronta na hora da marcação de cena. Texto sabido, estado emocional da personagem tomando a frente da pessoa, pronta para receber as orientações passadas em cochicho pelo diretor. Atuava sem tirar o sentido do que devia fazer, depois do meu “valeu” ela olhava apreensiva para mim esperando meu afago. Em Tigipió, uma História de
Amor e Honra ficou mais forte em mim a convicção de que os atores são os indispensáveis cúmplices do diretor e sem eles o diretor não será capaz de realizar a obra. Para o diretor é preciso que alguém, o ator e atriz sofram e sinta o prazer por ele.
Regina Dourado abraçou um difícil ofício e assim se apresentou sempre como uma atriz irretocável que exigia entender o papel para o qual estava sendo convidada. Assim foi no Festival de Gramado, de Taskent, na Rússia, no Festival de Karlovy Vary, em companhia de filmes como Paris Texas, de Win Wenders, Ginger e Fred de Federico Fellini com Marcello Mastroianni e Giulietta Massina, Ran de Kurosawa, Rosa de Luxemburgo de M. Von Trotta e tantos outros belos exemplos da mais digna arte cinematográfica mundial e o nosso Tigipió, bem posto nesse meio. Lá no jardim do Palace Thermal, Regina Dourado roubava a cena nas mesas de autógrafos. Ela que muitas vezes me confessou que interpretar, viver outras personagens em cena não cansa, dizia ela, o que cansa e ter que virar deusa diante das pessoas…
A noite formou-se uma grande fila de jovens loiros e rosados para dançar com Regina Doradóvá. Ao final de quase duas horas de dança e fotos ela me disse: “Prefiro mil vezes filmar o dia inteiro no sol quente de Itaiçaba do que ser pisoteada pelos loiros daqui”.
Em Tigipió, Uma História de Amor e Honra, Regina Dourado mais que representava, ela de fato vivia a jovem do longínquo alvorecer do século XX, em 1919 na pequenina Itaiçaba, pois de pé, viveu e sofreu a vida de Matilde, a moça do mato. Tudo ia muito bem às filmagens de Tigipió. Quando a produção distribuiu a programação da próxima semana onde estava previsto a filmagem da sequência apelidada de Pietá, pela forma em que os atores compunham a imagem ao final da ação, uma cena de nu, já conhecida pelos atores no roteiro, Regina, na hora do jantar da equipe veio falar comigo, queria apoio e me disse que havia prometido à mãe que lhe ligaria antes da cena de nu. Fui com ela ao posto telefônico da cidade e ouvi quando ela disse: Benção mãe….
Dirigi Regina Dourado em mais um filme, “O Sinal da Cruz”. Ela não errava nem fala nem marcação, nem emoção.
Dividindo-se entre a paixão pelo jovem engenheiro Heitor, o rei, vivido por José Dumont, recém-chegado da cidade grande e os freios que lhe impunham a vigilância do pai Cesário, o Cezar imperador. Regina Dourado foi o Rio Jaguaribe, sangue do Ceará que se esvaía; a pedreira que se transformava em barragem. Seus olhos mesclavam a dor da fome que matava as crianças e a férrea resistência do sertanejo que transformava a pedra em pão e a fé em esperança em vida. “Quem morre de fome não vai para o Céu”
Fala de João Falcão em Tigipió..que Regina repetiu varias vezes aos ver os retirantes passando sem rumo pelas estradas secas. . .
Sem Regina, o cinema brasileiro fica mais pobre. Itaiçaba jamais esquecerá que foi cenário de arte e vida, para a notável Regina Dourado. Muito obrigado Regina.