Durante dois semestres eu ia uma vez por semana a São Paulo para dar aulas na USP. Vez por outra ficava mais de um dia e, então, uma colega me emprestava o carro com a recomendação de entregá-lo somente ao Raimundinho ou ao Wanderley, dois lavadores de confiança. Raimundinho era de Sobral, no Ceará, e Wanderley era de Tracunhaem, em Pernambuco. Eram amigos da feira de Caruaru. Se conheceram pagando promessa ao Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, no Ceará. Conversávamos sobre carros, chuva, frio, comida, saudade e futuro.
Lá pelo meio do segundo semestre, já acostumado à presteza e à eficiência de Raimundinho e Wanderley, fui abordado por outro lavador, de mesmo sotaque e gentileza – Bom dia Professor… vigiar aí e lavar rapidinho… era o Severino, irmão de Raimundinho. Eles estão ali, disse-me apontando para uma esquina muito movimentada numa ruazinha ao lado.
Na primeira oportunidade fui até lá. Era a pastelaria do chinês. Raimundinho socava a cana na engenhoca, servia o caldo, Wanderley estirava a massa e tocava o pastel no tacho de óleo. Tudo novinho e os dois de avental e boné. Agora estavam trabalhando na sobra. Aquela cena fazia parte de minha vida. Afinal, meu pai, seu Dimas, foi dono da pastelaria com caldo de cana mais conhecida de Fortaleza, a Leão do Sul, na Praça do Ferreira.
Raimundinho, o mais falador, de expressão fácil, me contou como foi esta troca de atividade: “Ora, seu Yauon (chinês) tinha esse alpendre aqui vazio, vizinho à sua mercearia e nós viemos falar com ele: „Seu Yauon, nós viemos lhe fazer uma proposta. Eu sei tocar uma engenhoca de caldo de cana e o Wanderley sabe fazer o pastel de carne com azeitona e de queijo com cebolinha e coentro. Nós queríamos saber se o senhor pode comprar a engenhoca, o fogão de caldeirão de duas bocas, o tacho, a espumadeira, a colher de meia, a pinça e a máquina de espalhar a massa. A cortadeira não precisa, o Wanderley amola o beiço de uma lata boca redonda e pronto.‟ Ele ouviu com muita atenção, nós até
pensávamos que ele não ia querer. Ofereceu café e nos deu duas bananas, sem dizer nada. Entrou, passou um tempo, voltou e disse que sábado dava a resposta. Não agüentou, no outro dia nos chamou para comprar as coisas, desde que nós montássemos tudo, ele ia mandar fazer a parede fechando o alpendre. „Isso também a gente faz, seu Yauon”… Raimundinho e Wanderley são sócios do chinês e já chamaram o Severino para trabalhar na pastelaria. A pastelaria foi feita com investimento do seu Yauon, o saber do Raimundinho e do Wanderley e os fregueses já existiam, passando na calçada.”.
Não seria correto que os donos do Vaga- Fácil tivessem feito algum investimento na construção de estacionamentos subterrâneos nas áreas públicas expropriadas da população e de lá tirassem seu lucro? A clientela já estava por lá, estacionando em lugares proibidos, em fila dupla. Afinal, Brasília foi construída com a participação de todos os brasileiros, até daqueles que não a conhecem. Ela foi construída também às custas da aspiração e do sonho de todos aqueles que sonharam com uma vida melhor e quem acena com a possibilidade de corresponder ao sonho de alguém torna-se devedor. Pois se até a pastelaria do chinês requer um investimento e corre seu risco… O risco do vaga fácil é o risco de tinta, feito pelo GDF, no chão que é nosso. Raimundinho, Wanderley e seu Yauon sabem que, para ganhar, têm que investir, trabalhar e correr risco, ainda que seja o risco de fazer uma fezinha na loteria. Pastelaria do chinês, sim, Vaga Fácil, não.
Pedro Jorge de Castro
Cineasta / Doutor em Comunicação e Artes