Roma 1968, Frederico Felline finalizava Satyricon dividindo a atenção da mídia com o protesto dos estudantes que diziam Deus nos dá a Liberdade e a Universidade nos toma. Era uma insatisfação contra a sociedade manggiare e tenere, queriam uma sociedade com perspectivas e compromissos sociais. Os protestos em Roma se somavam aos de Turim, Gênova, Milão, Bolonha, Nápoles e Pádua. Os lideres tinham conhecimentos de Marx, Lênin, Engels, Levi-Strauss, Sartre e vez por outra iam buscar coragem no anarquismo de Mikhail Bakunin. Sabiam de cor as lições de Mao Tse-tung, Ho Chi Minh, Che Guevara, além disso, eram escolados pelos pensamentos dos cineastas Luchino Visconti, Gillo Pontecorvo, Sergio Leone e ouviram Píer Paolo Pasolini na pedra Central da Universidade de Roma e dizer organizem-se, não se dispersem, definam seus objetivos, façam com que suas palavras de ordem reflitam seus ideais, comprometam-se uns com os outros. Não atirem pedras nos soldados… descubram onde é a casa do comandante!!! Este clima dominava a Roma de março de 1968.
Em maio de 1968 Paris explodia com barricadas dos estudantes contra a polícia. Paris pegou fogo nas noites de 10 e 24 de maio e as pedras da pavimentação das ruas viraram munição dos estudantes. Foi a mais intensa manifestação estudantil que a história francesa narra. Roma ficou vazia depois do acerto sobre a reforma Universitária. Diplomas intermediários, manutenção dos exames da seção pós-férias, liberdade total de cátedra, etc.
Nas férias de julho a setembro muitos estudantes, assim como eu, principalmente os não europeus iam trabalhar em outros países. Foi na volta das férias de 1968 que um amigo escultor português, exilado em Roma, me fez uma grata surpresa; sem que eu soubesse, esculpiu em bronze minha cabeça. É uma linda peça pela habilidade do escultor, não pela beleza inexistente na figura do modelo. Foi um gesto de gratidão pelo fato de eu ter o deixado “roubar” meu passaporte e assim ele pode visitar o pai doente em Portugal. Apresentou-me quando fui ao seu ateliê na volta das férias. Sua namorada, Helena, pintora formada pela Escola de Belas Artes de Roma, havia me fotografado algumas vezes, nunca desconfiei.
Terminei meu curso em Roma, a cabeça viajou comigo para a França, Alemanha, Marrocos e algum tempo depois voltei ao Brasil. Trouxe comigo minha cabeça em nova peregrinação: Sorocaba, São Paulo, São José dos Campos e Brasília. De casa montada em Brasília, finalmente a cabeça foi desembalada e posta sobre um móvel. Em algumas mudanças de casa e lá por volta de 1979, a cabeça sumiu. Cheguei a pensar que foi um ato de libertação.
Esqueci-a, mas de vez em quando ela me vinha à lembrança. Olhando firme, decidida e, como toda a máscara com aquele ar de indiferença absoluta. Nem um esboço de sorriso ou de preocupação. Em 2008 o nosso Instituto Animatógrafo de Comunicação passou a oferecer cursos, dentre os quais o bendito curso de Produção e Direção de Documentário. Dentre os matriculados estava o jornalista Edson Luis que sugeriu a realização de um documentário sobre o escultor Ricardo Sturm. Fomos a casa/ateliê do Ricardo e durante as gravações, em meio a uma boa conversa de gaúcho e cearense, ambos têm a tradição de bem contar histórias, me veio a sina de minha cabeça, a outra. Para registrar todo o processo de escultura – barro, gesso, cera, argila – chegamos à etapa do bronze derretido, em uma pequena fundição situada na região Lago Oeste, a 20 quilômetros de Brasília. Trabalho bonito e dramático, até a gratificante de quebra da argila e dar à luz a peça fundida em bronze.
O bronze que chega às pequenas fundições vem através de compradores de sucatas de alumínio, ferro, bronze e outros metais. E de se prever que alguma coisa interessante pode chegar no meio da sucata. Tomado por minha curiosidade habitual, puxei conversa com o profissional da fundição e perguntei-lhe se, por ventura chegavam algumas peças que, de tão bonitas, eles não tinham coragem de derreter. Sim, chegam castiçais, cavalos, maçanetas… Já chegou até busto e até uma cabeça!!!. Fiquei de pé e pensei “de choque”: a minha cabeça está aqui… Vamos lá ver, onde é? É ali, naquele galpãozinho, vamos lá. Saí puxando a fila, parei na entrada. Ele abriu a porta, entrei em meio à penumbra e, sem saber fui direto a um grande móvel com muito trem em cima. Tomei um grande susto: Olha aí a minha cabeça! A minha cabeça. E lá estava ela, a minha cabeça, olhando pra mim! Ela olhava pra mim, a minha cabeça! Os rapazes da fundição não entenderam nada. O professor surtou… Devem ter pensado, mas começaram a me identificar com minha
cabeça e disparam a rir. Fiquei cara a cara comigo mesmo e veio a vontade incontida de perguntar em tom de repreensão: Puxa! Porque você não disse onde estava? Faz muito tempo que você fugiu, trinta anos. Foi a única vez que pude sentir o que é uma esquizofrenia. Viva o bronze, material que sabe guardar enigmaticamente os segredos, para sempre.
Pedro Jorge de Castro – Cineasta
Doutor em Artes e Comunicação
Diretor do Instituto Animatógrafo de Comunicação